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Identidades,
percursos, paisagens culturais Carlos Fortuna |
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Introdução | |
Introdução: expressões públicas da vida sensível Os gregos da Antiguidade podiam perceber, com o seu olhar, as complexidades da vida. (...) Aquilo que em tempos fora a vivência do lugar surge agora como operação mental flutuante. O presente livro reporta-se a uma variedade de
temas que a Sociologia tem tratado de modo desigual, por vezes, de
forma assistemática e, nalguns casos, tem mesmo ignorado. São várias as
razões para este interesse oscilante da Sociologia por alguns dos temas
aqui tratados. Umas derivam directamente da sua matriz epistémica,
outras resultam da natureza política das opções (e das omissões)
científicas e de investigação em Sociologia. Sem nos determos sobre
este aspecto, importa realçar nesta apresentação que os textos que
agora se reunem, todos eles já editados anteriormente (1 As identidades, os percursos e as paisagens que aqui se discutem revelam-se outros tantos sinais de uma longa modelação das formas de relação comprometida dos sujeitos com a cultura contemporânea. Esta é, nos nossos dias e de forma crescente, uma cultura expressiva, em que abundam práticas de externalização e de objectivação dos sentimentos, gostos e preferências dos sujeitos. É também, cada vez mais e por isso mesmo, uma cultura de confronto dos sujeitos uns com os outros e de todos com os ambientes físicos, tecno-informativos e sociais que os rodeiam. Todavia, ela não deixa de ser também uma outra cultura de internalização, subjectiva e intimista, que potencia o confronto dos sujeitos consigo próprios, com a sua condição ontológica, os seus trajectos e antecedentes. A subjectividade e a auto-reflexão são terrenos de negociação dos sujeitos com a cultura objectiva que os cerca e interpela. Esta cultura objectiva contemporânea é
principalmente uma cultura de definição de distâncias e de demarcação
de fronteiras. As mudanças sociais e políticas bem como o jogo do
mercado impõem uma contínua reorientação dos sujeitos. Em consequência,
as fronteiras não são nunca estáveis e os critérios da sua definição
recompõem-se a cada instante, fazendo ajustar permanentemente o que
está para cá e para lá dessa demarcação (2 Ambivalência, hibridismo, representação, terceiro espaço, poderes cósmicos e caósmicos, cosmopolitismo estético, entre muitas outras, são algumas das categorias que passaram a povoar o léxico político e sociológico mais recente. O que pretendem é, a um tempo, dar conta das novas configurações e ordenamentos sociais e problematizar algumas das nossas mais arreigadas convicções. Neste livro, de uma ou outra forma, são várias as ocasiões em que se problematizam algumas dessas convicções. Desde logo, na Parte I, a questão das identidades e o sentido da comunidade como expressão identitária, surge discutida na relação íntima que estabelecem com a relação local-global e espácio-temporal. A ideia de translocalidade permite julgar acerca dos limites e das oscilações das fronteiras tanto espaciais (local-global) como temporais (passado-presente). O que percorre os dois textos que integram esta Parte I é a ideia de uma reconstituição deliberada do sentido de identidade, a que os sujeitos se entregam na tentativa de compaginarem a sua condição, pessoal ou colectiva, a novos figurinos sociopolíticos e culturais. Schumpeter surge aqui como inspirador de um acto destrutivo, mas criador, de redefinição do sentido de pertença e de localização das identidades. O mercado e o consumo, tanto material como simbólico, a tecnologia da informação e a cidade, surgem como pano de fundo desta destruição criadora das identidades e da busca de vinculações alternativas da consciência de si. A questão de onde situar a consciência colectiva e a identidade partilhada não é uma questão nova da Sociologia. Émile Durkheim já a confrontara ao admitir que a consciência colectiva ou existe à deriva num vazio cultural ou, em alternativa, relaciona-se com o resto do mundo, através de um qualquer substracto do qual fica refém. A moderna cultura do consumo, tecnológica e urbana pode tornar-se nos nossos dias esse substracto que confere existência e situa a consciência colectiva. Uma tal hipótese pode sustentar-se, por exemplo, nas análises pós-modernizantes de Umberto Eco (1986) ou de Jean Baudrillard (1991) acerca da hiper-realidade e do mundo Disney. Mas a origem da discussão é normalmente situada na reflexão dos "teóricos críticos" da Escola de Frankfurt. A teoria das "falsas necessidades" de Herbert Marcuse (1964), onde é notória a relação com a questão marxiana do fetichismo da mercadoria, pode revelar-se, neste domínio, uma primeira aproximação. Contudo, é talvez na obra de Theodor Adorno (1991) acerca da emergência da indústria cultural, que se encontra uma reflexão mais aprofundada e actual. O cerne do contributo de Adorno, como gostaria de o sintetizar aqui, reside no entendimento que a sociedade se complexifica com o advento da capacidade de produção de um conjunto variado de bens culturais individualizados que não apenas forjam as mais diversas fantasias entre os seus consumidores, mas, simultaneamente, definem ou renovam uma estrutura individualizada de gostos, preferências e realizações pessoais. Este processo cultural de individualização dos
sujeitos e das suas referências tem um efeito directo sobre a natureza
("autoritária") da sua personalidade, ao mesmo tempo que modifica a sua
relação com o trabalho, as relações familiares, a comunidade e a
cultura. De um modo geral, pode dizer-se que estamos perante uma longa
transição de comportamentos e atitudes: enquanto no século XVIII
dominava uma concepção holística do carácter pessoal que se fundia com
elementos da natureza humana e social dos sujeitos, o século XIX passou
a cultivar uma visão existencialista e idiossincrática desses traços da
personalidade individual (Sennett, 1986; Susman, 1984). Uma tal
modificação do carácter (social) em personalidade (individual) e a
relação social que estipula surge tratada em pormenor na obra de
Christopher Lasch (1979) e na ideia da fragilidade do self
narcísico. A personalidade narcísica, ao mesmo tempo que recusa a
espessura dos sentimentos e os envolvimentos sociais e históricos
densos dos sujeitos, é uma manifestação cultural extremada da busca do
imediatismo e da gratificação pessoal (4 A Parte II do livro, acerca dos percursos, ilustra esta busca da gratificação imediata através de dois textos, um sobre o turismo cultural em Évora e Coimbra, e outro sobre a peregrinação a pé a Fátima. Ao contrário do que pode suspeitar-se à primeira vista, entre si, estes textos estabelecem uma cúmplice unidade. O que os une é, desde logo, a narrativa acerca da deslocação no espaço, no tempo e no próprio imaginário dos seus protagonistas. Mas estão também unidos pela natureza das intenções e dos objectivos subjacentes a essa decisão de viajar. Num caso - o percurso urbano dos turistas - é a descontextualização e a ausência de compromissos que, ampliadas pelo cenário que visualizam e experimentam, proporcionam a projecção imaginada dos sujeitos para fora de si mesmos. Noutro caso - o percurso dos caminhantes - essa projecção sustenta-se no sacrifício físico e na recompensa que se pretende obter por seu intermédio. Em ambas as situações, os percursos estão carregados de simbologias, como de resto também as paragens que os recortam e unificam. Mas são sempre paragens breves, porque o que está em causa é a fuga, o fluxo e a busca da novidade. Turismo e peregrinação partilham entre si experiências ritualizadas distintas e semelhantes. O seu menor denominador comum é a recontextualização e a integração, mesmo que passageira, numa outra comunidade, mesmo que efémera. São actos conscientes de decisão individualizada, em busca de laços afectivos que se concretizam algures entre, de um lado, um sentido de comunidade tradicional (de residência, trabalho, obrigações e filiações directas) e, de outro lado, um sentido de sociedade ampla, de interacções rasgadas e fugazes e, por isso, despersonalizantes e descaracterizadoras da identidade. Ambos os percursos reactualizam, assim, no plano teórico, tanto a antropologia da liminaridade de Arnold van Gennep (1960) e de Victor Turner (1969), como a sociologia marginalizada das associações afectivas de Herman Schmalenbach (1977). A busca de outras vinculações para que nos remetem os actos turísticos e peregrínicos contêm, para além do mais, algum sentido de transgressão dos ordenamentos sociais convencionais e aflorações do sentido narcísico da identidade e da personalidade modernas. Como já se deixou implícito, a emergência desta
nova personalidade coincide com o desenvolvimento da indústria da
cultura e o seu correlato, a cultura do consumo e da informação
tecnológica. Em resultado disso, desde as décadas finais do século XIX
e as primeiras do século XX que vimos assistindo à instauração de uma
lógica comportamental nova em que a aparência, a exibição individual e
a gestão das impressões e sentimentos ganham relevo sem paralelo.
Existem neste argumento ressonâncias manifestas com os primeiros
ensaios de Sociologia sobre o consumo, nomeadamente com os trabalhos de
Thorstein Veblen (1961) sobre os consumos ostentatórios e de Gabriel de
Tarde (1985) sobre os mecanismos da imitação. Em ambos os casos, o que
está em causa é a compreensão dos traços iniciais de uma cultura urbana
de pendor individualista e expressivo que se desenvolve sob o pano de
fundo da massificação da produção e do consumo, tanto materiais, como
simbólicos. Seja por via da competição distintiva, típica das elites
(Veblen), seja por via da imitação contagiante, típica das classes
médias (Tarde), esta clássica sociologia do consumo assinala a
emergência de modalidades novas de relacionamento e interacção social,
assentes numa cultura hedonista e expressiva da personalidade (5 No desenvolvimento desta problemática, estudos
sociológicos recentes fazem destacar a constituição de uma nova relação
que se vai configurando entre o self e o corpo
físico dos sujeitos. Neste domínio particular da expressão pública e da
representação social do corpo, a literatura sociológica é tão vasta
como recente (6 Esta perspectiva, apesar dos diferentes estatutos
epistemológicos conferidos ao corpo, encontra prolongamentos vários
numa outra linha e interpretação sociológica do corpo, nomeadamente,
nas análises de Norbert Elias (1989) e de Michel Foucault (1979). Aqui,
a biologia humana surge epistemologicamente subordinada à cultura. Em
Elias, a civilização do corpo (7 O eclipse do corpo enquanto fenómeno material e
biológico permite sustentar que a performance
corporal é uma dimensão da vida cultural que se exprime no espaço
público de aberta interacção, de que a cidade e a metrópole moderna são
os melhores exemplos (8 É neste quadro que se integram as paisagens que constituem a Parte III deste livro. Não se trata, ou não se trata apenas, de paisagens no sentido físico-geográfico, mas antes de paisagens num sentido mais amplo de ambientes vividos e de atmoferas sensíveis. São paisagens olfactivas e paisagens sonoras que, ao mesmo tempo que libertam e reduzem constrangimentos culturais sobre homens e mulheres, os vitimizam e sujeitam a códigos renovados de estar e de se relacionar em público. O ambiente que se pressente nestas paisagens é citadino, enquanto o agente que as produz é tecnológico. Ambas as paisagens em discussão contêm percursos no desenrolar da sua constituição. Percursos históricos que vão, num caso, da sociedade do miasma à sociedade trompe-nez e, noutro, das sonoridades tradicionais aos ambientes sonoros típicos da era industrial. Para trás foram ficando modos de identificação dos sujeitos com os odores do seu corpo e do corpo dos outros, como foram também desaparecendo as cadências sonoras por que se pautava a vida colectiva e se vinculavam os sujeitos a ritmos partilhados de trabalho e reunião. São paisagens que, como vimos, mobilizam capacidades cognitivas e sensoriais diversas. Mas, se o corpo deixou de ser natureza apenas e se tornou cultura, essas capacidades estão em fase de reeducação. Com elas estamos a reaprender novas formas de ordenamento social, novas modalidades de interacção social e ambiental, novas modalidades de individualização. A cultura urbana moderna, feita também de novos sons e de novos perfumes, quando vista à luz dos nossos sentidos é a mesma que fez definhar o corpo físico para, em seu lugar, ampliar a corporeidade. Fez diminuir o odor, para ampliar os perfumes. Fez desaparecer a individualidade dos sujeitos e dos espaços para formar a paisagem envolvente e descartável da personalidade. O mesmo se passa com o moderno ambiente sonoro da cidade. Matou o silêncio para socializar a bruma sonora e reduziu ao máximo o som da terra para, em seu lugar, ampliar o da tecnologia. Tudo isto corre a par da possibilidade cultural da privatização destas paisagens. Com efeito, o perfume está para os odores sociais, como o walkman está para as sonoridades. Nómadas e miniaturizados, podem transportar-se e transportar-nos com eles, permitindo dissimular aquilo que somos, alimentando a esperança de sermos aquilo que imaginamos. Em síntese, estas modernas paisagens olfactivas e sonoras permitem prolongar esse acto criador de destruição da identidade. Sempre através da definição de distâncias e de fronteiras, mesmo se voláteis e indizíveis, entre um eu egoísta e auto-contemplativo e um outro que se marginaliza ou despreza. Sempre através de fragilíssimas distinções entre o espaço público e o espaço privado. Sempre através de expresões públicas da vida sensível. Como se percebe, é sinuoso o traçado que esta colecção de ensaios convida a percorrer. É um traçado feito de imagens, de viagens e paragens singulares. Cada uma destas, à sua maneira, é um fragmento fortuito de uma realidade social e cultural mais ampla. Se o texto é um campo aberto perante o qual o leitor se comporta como um caçador, como diria Walter Benjamin, a decifração do sentido desta realidade mais ampla é uma possibilidade deixada à interpretação dos próprios leitores. Afinal, a leitura é, ela própria, um percurso que tem que ser percorrido para dele se tirar sentido. Santiago do Cacém, Abril de 1999. NOTAS (1 (2 (3 (4 (5 (6 (7 (8 |
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